terça-feira, 6 de janeiro de 2009

ensaio número dois

"Deolinda franziu o sobrolho. Empurrou o português de encontro à parede, colando-se a ele. Sidónio não mais regressaria desse abraço.
- Que olhar é meu nos olhos teus?
Nessa noite se solveram, mãos de oleiro, salvando o outro de ter peso. Nessa noite o corpo de um foi lençol do outro. E ambos foram pássaros porque o tempo deles foi antes de haver terra. E quando ela gritou de prazer o mundo ficou cego: um moinho de braços se desfez ao vento. E mais nenhum destino havia.
- Amar - disse ele - é estar sempre chegando.
Um ano depois, sentado sobre um banco de pedra, o português sente estar ainda chegando a Vila Cacimba enquanto convoca as memórias de encontro com a mulata Deolinda. O que faltava, agora, para que ele se sentisse já chegado?
Lembrou os versos que ele próprio rabiscara na ausência de Deolinda: «Eu sou o viajante do deserto que, no regresso, diz: viajei apenas para procurar as minhas próprias pegadas. Sim, eu sou aquele que viaja apenas para se cobrir de saudades. Eis o deserto, e nele me sonho; eis o oásis, e nele não sei viver.»"

Mia Couto - Venenos de Deus, Remédios do Diabo.

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