terça-feira, 9 de dezembro de 2008

aulas de Português pt. 3 (o texto do teste de hoje)

“Para onde vão os dias?" - perguntou-me a menina: "O tempo também morre, assim como os gatos?"

Ela tinha visto um gato morrer. Um gato morto é uma coisa muito morta mesmo. Acho que nem conheço nada que pareça tão morto, ou que se pareça tanto com a morte, quanto um gato morto. Talvez porque nada pareça tão vivo quanto um gato vivo. Um gato morto é quase inverosímil. Entende-se facilmente como surgiu e se propagou o velho mito segundo o qual os gatos possuem sete vidas - tudo neles é vida, e tanta, e de uma foram tão sólida, tão elegante, que não parece possível que possam morrer algum dia.

A menina era chegada ao assombro, como todas as crianças, e sempre que olhava para as coisas à sua volta descobria nelas o que, a despeito de evidente, nós, adultos, não costumamos perceber.

"À noite o silêncio tem grilos."

Aprendi a prestar atenção ao que dizem as crianças. Esforço-me por olhar o mundo através dos límpidos olhos delas. A menina, por exemplo, faz poesia como que se distrai a tropeçar:
"Achas que se um homem engolir muitos pirilampos piri-lâmpada?"

Ela não tem medo de perguntar. Pergunta muito mais do que afirma. Quase todas as suas frases terminam com um ponto de interrogação.

"As sereias são os girinos das pessoas?"

"Porque é que os peixes não se afogam?"

"Porque é que os homens usam gravatas?"

A curiosidade é outra das grandes virtudes infantis. Ao crescermos desabituamo-nos de perguntar. Conheço pessoas, sobretudo homens que nunca fazem perguntas. Exigem certezas sobre qualquer assunto. É este tipo de homens, aliás, que normalmente alcança o poder e governa o mundo.

O nosso cérebro encolhe e perde peso à medida que envelhecemos (não, não se trata de uma metáfora - é um facto comprovado cientificamente). Eu creio, e isto já não é ciência, trata-se de simples intuição feminina, que o nosso cérebro encolhe porque deixamos de fazer perguntas.
A partir de certa idade devíamos ter aulas de infância. Matéria: a arte de ser criança. Professores: as crianças. Se colocassem todos esses severos e cinzentos senhores que nos governam, esses que ordenam as guerras, esses que decidem sobre a vida e a morte da humanidade, se os colocassem de cócoras no pátio de uma escola, a brincar com piões e a discutir os descaminhos do tempo, a vida dos gatos, as cores do arco-íris, enfim, todas essas questões sinceramente irrelevantes que as crianças discutem, talvez fosse possível devolver-lhes a capacidade de se interrogarem - e então, tenho a certeza, o mundo seria um lugar mais bonito e mais seguro.

Chamem-me ingénua. No latim original a palavra ingénuo significa não alterado, puro, nascido, livre, digno de homem livre, recatado, probo, honesto, franco, leal. Gosto dessa palavra.

Faíza Hayat, in "Público", Novembro, 2003

1 comentário:

Pe d'orelha disse...

Não poderia ter melhor começo!-.-
x)